domingo, 11 de novembro de 2007

Único poema escrito - Um devaneio / Uma tentativa

Dores de amor antigo

Eu queria poder falar.
Sobre filas de cinema,
Sorrisos à toa no parque num sábado de sol,
De telefonemas sem atendimentos.

Eu queria, por uma vez,
Reviver um resquício de passado.
Como nova vida,
Possibilitada por uma amnésia repentina.

O cheiro, o perfil num quarto escuro.
Uma mão com o meu cheiro.
Um corpo que te guarda e
Apropria.

Crueldade minha, não querer que me apropriassem?
Crueldade nossa, não nos permitir uma amnésia?
O dia mais rápido do que antes.
Lágrimas ao invés de suor.

Até onde vale o orgulho?
Até quando valem as palavras das nossas avós e das nossas mães?
Quando ouvir o outro e quando ouvir a si?
Quando despejar vontades e quando calar a boca?

Quase me desconheço
Pinceladas de risos na memória.
Sim, é possível tentar mais um pouco.
Mas, as chances serão sempre infinitas?

(maio/jun - 2007)

Máquina de escrever

Meu coração é uma máquina de escrever
As paixões passam
As canções ficam
Os poemas respiram nas prisões
Pra ler um verso, ouvir, escutar
Meu coração falar
Até se calar a pulsação
Meu coração é uma máquina de escrever
No papel da solidão
Meu coração é
Da era de Guttemberg
Meu coração se ergue
Meu coração é
Uma impressão
Meu coração
Já era
Quando ainda não era
A palavra emoção
Mas há palavras no meu coração
Letras e sons
Brinquedos e diversões
Que passem as paixões
Que fiquem as canções
Nos poemas, nos batimentos
Das teclas da máquina de escrever
Meu coração é uma máquina de escrever
Ilusões
Meu coração é uma máquina de escrever
É só você bater
Pra entrar na minha história

(Pedro Luís e a Parede - FONTE: http://letras.terra.com.br/pedro-luis-e-a-parede-musicas/396199/)

sábado, 13 de outubro de 2007

Pra saber de novo que estou sozinha. Momentos compartilhados são viagens solitárias em quartos que não são seus. Dorme um corpo ao lado que ama outro corpo que não o seu. Dorme e ronca ao seu lado uma pessoa que desconhece. Sorri pra você de manhã e te fala bom dia com intimidade (mas você pouco viu esta pessoa). Abre tuas pernas e sussurra qualquer coisa suave no seu ouvido. Isso já foi dito em outros ouvidos de outras mulheres tão solitárias quanto você. Abre seu abismo e marca com propriedade seu objeto de exploração. O mundo segue em cambalhota esquizofrênica, trocam os corpos, mas não mudam os amores. Tenho medo de fantasmas. Quero esquecer e confiar. Como todos. Quero confiar mesmo em um, em dois, em três homens. Arranjar tramóias e fugir em labirinto espiralado. Quero uma certeza estúpida e encho minha rotina com cigarros e copos americanos para embriagar a atmosfera dos corpos vagabundos dos bares sujos. Então, de que me vale agora as promessas de amor, se antes nem eram promessas, era tudo vazio e frio, mas com gozo? Qual vale mais? Um amor novo do qual desconfio, porque mal estruturado ou manhãs de zigue-zague por esquinas e camas nunca vistas? Às vezes, penso que não há diferença entre pessoas. Parece uma multidão num jogo vão de amor infantil. Quero cair num abismo de lírios. (ago-set/07)

terça-feira, 18 de setembro de 2007

Eu quero contar uma história assim como um roteiro de cinema, com muita cor e esquecimento das coisas, com um personagem alegórico sem nome, com um fio de suspense mental, com uma música de fundo, com as cores desérticas palpitando nas retinas. Se fosse mesmo tudo tão bonito assim... Eu quero sim, contar uma históiria com começo meio e fim, sem desordenação dos fatos, sem atropelamento de gestos. Ok. Vamos dar tempo ao tempo, Senhora. A Senhora dá mesmo todo o tempo do mundo. Dá os dias, os gozos, os buracos bem melecados, sorridente, feliz. E se ela ficasse perdida naqueles labirintos de espelhos dos parques de diversões, embriagada por qualquer coisa, com os olhos extasiados? Depois, Senhora se retira mesmo. Como por precaução. Não quer. Senhora precisa cuidar de si com responsabilidade sem tamanho. Tudo uma bobagem. Senhora pensa em outra coisa agora, já, neste instante mesmo. Pretende outra coisa, outros níveis de relacionamentos. Outro tipo de diálogo. Quer um labirinto novo.

domingo, 2 de setembro de 2007

Dodói - L. Tatit

Eu ando tão dodói
Mas tão dodói
Que quando ando dói
Quando não ando dói
Meu corpo todo dói
Tendão dói
Dedão dói
Pomo de Adão dói
Ouvido dói
Libido dói
Fígado dói
Até meu dom dói
Pois quando canto
Não importa o tom
Dói

quinta-feira, 12 de julho de 2007

Espera. Mais um pouquinho. Logo tudo cairá por terra. O cheiro passa. Seria possível, então, flagrar, experimentar por mais um segundo qualquer manifestação no escuro? Aliviar, esquecer, deixar tudo desértico? Tenho vontade de me esquecer. Extravio a lógica, aquilo que é conhecido e fácil. Busco um espaço noutro lugar, em outra existência, em outro par de olhos que não são os já conhecidos. Estranho mais do que devo. Poderia esquecer, mas latejam também na memória as últimas sensações. Absurdamente difícil anular. Botar ponto final como é devido. Mas nunca tem fim. As reticências e/ou o ponto-e-vírgula são bem-vindos. Não é possível fechar portas, uma atrás da outra, como quem foge de si. É preciso se escancarar mesmo. Com muito prazer.

domingo, 8 de julho de 2007

Sem vísceras


Sem nenhuma tentativa de sedução alheia. Um silêncio auto-instituído. Uma necessidade de se retirar da cidade. Embora, ela ainda me rodeie. Mesmo aqui entre quatro paredes, os vizinhos me anunciam a cidade societária. Não é necessário ir até o centro para saber da energia de lá. Dia de virada cultural. Sinto quase o cheiro. Os sorrisos e as latas de cerveja. Muitas pessoas. Muitos olhos. Uma infinidade de pequenos pares de pontos brilhantes. Antes aqui e quieta. “Antes aqui e agora”, Gilberto Gil. Lixos. Noite paulistana sempre sem estrelas. Mais cinza ainda por causa da falta de outdoors. Os prédios estão imundos. As propagandas escondiam a decadência das construções. Uma propaganda para falsear a carcaça. Um produto, uma mercadoria para colorir as carcaças, grandes, impetuosas, mas cinzas. Carcaça de edifício. Carcaça humana. Também descolorida num misto de preto e branco. Sombras. Uma cidade morta? Arquitetura aos pedaços.Uma janela quebrada. Um andar de edifício, às vezes, só a parede frontal. Inóspitos. Rugosidades desmoronadas. Uma construção em desconstrução. Alicerces apontam para o céu. Tijolos que se desfazem. Cor de terra. Madeiras podres. Madeiras em construções em outra parte da cidade. Favelas. Casas esquecidas. Edifícios multiplicados pelas esquinas. Quanto mais alto, melhor. Cidade em decomposição. Outros traços. Edifícios erguidos com rapidez. Largo 13 de maio sem camelôs. Há quanto tempo eu não passava por lá? Agora, tudo bonito. Com canteiros de jardim. Depois, serão destruídos. Uma sobreposição de tijolos. Sobreposição de corpos mortos jogados uns sobre os outros. Cidade escancarada.

Então, a minha carcaça e a sua? A dele e a dela também? Quantas cores você tem na carcaça? Quais mercadorias carrega? Como monta seus produtos no seu corpo-cabide? Calças novas, brincos, anéis, colares, esmaltes, presilhas de cabelo, batom, boné, chinelo, blusa verde ou amarela? E os celulares? Qual é o modelo que você tem?
Carcaça-personagem?
Nome. Idade. Profissão. Como assim não faz nada da vida? CPF e RG por favor. Atestado de óbito, por gentileza. Ok. Obrigado. A música pára. Crianças. Crianças-carcaças? A carcaça da mãe na filha?
Projeções de sombras?

Segundo o dicionário Houaiss, acepção de número dois: cadáver de animal de açougue, sem o couro, os pés, a cabeça e as vísceras. Carcaça. Mais ainda ocorre a virada cultural e os edifícios traçam a geografia do centro. As escadarias, os bêbados, as pessoas alegres. Muitas roupas. Muitas marcas de cerveja para você escolher. Tanta felicidade de carcaça. Deixei minha carcaça no guarda-roupa. Não quero a presença do mundo. O esqueleto sente necessidade de troca. Os esqueletos também se decompõem em vida. Difícil saber quando. O corpo perde o equilíbrio. A consciência desconfia dos gestos alheios. É a precaução. Algumas pessoas acreditam que o fato de você se precaver é sinal de glória. Uma forma de não expor a carcaça. É algo feio. Sem cor, gelado, enrugado. Desidratado. Entretanto, a carcaça vem de brinde quando você é tirado do ventre. É uma condição do mundo contemporâneo. Impossível viver sem uma carcaça. Sem um conjunto de regras da aparência-cabide. Sem um personagem pronto, que ri, empina o nariz ou rebola com desenvoltura.

Depois de doze horas. A mulher fala ao telefone. Vai para a bendita virada cultural. Metropolitanos, uni-vos às águas de esgoto. Aos xixis pelas esquinas. Uni-vos, sobretudo, aos tapas, aos gritos, aos vinhos baratos dos supermercados coloridos, às armas dos policiais, aos olhos dos policias. Fiquem todos reunidos para a aberração da cidade, para as contruções centrais em decadência, para o ritual anual do centro velho. Música, cerveja quente num boteco sujo, mulheres e velhos safados, gays e lésbicas, bêbados e cambaleantes. Bem vindo à tentativa de driblar os olhos do Estado para que você consiga usar a sua droga. Cocaína, ecstasy, maconha. Todas elas também à disposição para uma maior união dos metropolitanos. Eles se unem. Com fervor.

Dois shows e duas brigas. Não há cerveja quente? Que estranho. Pois é, a gente não tinha muita cerveja guardada. Tá gelando. Já chega aí. Não tem problema, depois a gente bebe nalgum boteco. Beleza. Telão. Mulher mexendo as pernas. Alguns poucos esqueletos. Maxilares desenvolvem sorrisos. Consciências tentam justificativas para uma briga. Um velho safado passa a mão no ventre de uma mulher. Ela bate no velho. Justifica. Outra mulher apóia. Devia ter chutado mais. Talvez. É possível saber parar uma raiva? Bloquear os gestos difusos que se multiplicam pelas extremidades? Difícil. Melhor espancar mesmo. O céu sem estrelas. Já era previsto. Muitas estruturas férreas, muitos bloqueios, ordem e segurança. Progresso também? Muitos lixos. Catadores de latas por toda a parte, basta virar os olhos para a lata sumir. Mas tem as garrafas que também rolam pelo chão, como os bêbados do dia seguinte. Alguma coisa válida nisto tudo? Sim. Uma dança ao longo do prédio da Light, em frente ao Mappin. Sim, ali na Carlos Gomes. Em diagonal ao Teatro Municipal. Luzes e cetins brilhantes. Vermelho e verde. Uma música ao fundo. Beatriz, de Chico Buarque e Edu Lobo. Que brilhante idéia usar o prédio como chão. Será tudo escombro. Fim dos tempos?

Ainda virada cultural. Mais um show. Ótimo para os ânimos. Muita gente animada demais. Dói nos ouvidos e faz arder os olhos. Retinas multiplicadas. Todas as portas das magazines abaixadas. Tudo num tempo sem fim. Sem hora. Sem ano. Sem estatística. Poderiam ficar, ali, permanentemente, todas estas carcaças unidas em momento de diversão. Na cidade, as coisas também terminam. A mulher termina no boteco do Anhangabaú. Outrora tivera sentado num dos bancos que avistava. Em outra época, que também poderia ter sido permanente. Muitas cervejas na mesa. Seis carcaças-mulheres. De 19 a 40 anos. Lésbicas e heterossexuais.
Conhecidas de lugares por aí. Te conheço de algum lugar. Eu também te conheço, mas não me lembro de onde. Tem fulano e ciclano. Beltrano também faz teatro. Eu passei por uma escola. Depois, dívidas e filosofias. A cerveja quente do boteco acabou.

Mulheres para suas casas. Mulher-carcaça- cambaleante perde o ponto de equilíbrio. Metrô. Ônibus. Dor de cabeça. Claro, cerveja quente. Muitos cigarros. Cheiro de esgoto, gosto de cerveja quente na boca, fumaça entrando de todos os jeitos pelos furos faciais. Sai correndo pela rua escura. Bêbada-ofegante chega em casa. Para o banheiro. Até que enfim, posso guardar a carcaça no guarda-roupa.

(Ainda em processo)
Dorzinha


Dorzinha. De leve. Aquela no meio das costas. Atravessa. É preciso de algum alongamento dos órgãos internos. Sempre a mesma curvatura nas costas. O mesmo olhar sobrebaixado para não ter que olhar. Porque olhar faz mal. Por vezes. Agora, endireita-se na cadeira e mantém os olhos baixos como uma digitadora. Simples assim. Sem nenhuma exigência maior da sua capacidade de raciocínio. Um fim. Uma morte sonora. Piiiiiiiiiiiiiiiiiii. Desembesta. Curva de novo a coluna, curva todas as vértebras para olhar o umbigo. Abrir o peito, manter a coluna alinhada, aqui no computador ou em qualquer outro local, pode ser custoso. É preciso um exercício para abrir o peito. Um pouco de rigidez e pressão abdominal para manter a postura. Isso é por causa de umas dores antigas. Um tipo de fórmula descrente que te enfurece. Quase um estacionamento de coragem. Você permanece quieto, no mesmo cruzamento das linhas imaginárias, no mapa-mundi. Uma bala atravessa o peito. Não há ferradura. Preciso de uma. De escudo. Falta um pouco de prepotência e seriedade. Olhar-se de fora. Examinar com prontidão o que lhe incomoda. Incomoda-me o olhar baixo. O medo da reprovação. A possibilidade única do pior. Sempre se pensa no pior. Por isso, não se exige melhoria. Conformismo. Estacionamento de objetividade. Podia até fazer trabalho científico, com método e observação, sobre o estacionamento dos passos. Há necessidade de um resgate quase estrelar – de anos-luz. Um tipo de força da revolta. Os olhos claros, grandes e abertos. Dizendo, que sim, eu ainda existo. Não sentir os joelhos frouxos, o andar cambaleante, a vista cansada e o tom baixo da voz. Andar como um bloco de concreto. Frio e cinza. Alguma cor nas extremidades, para não dizer que sou preto e branco.

No fim. Sou. Bem escura. Não há motivo agora, de bexigas coloridas e passos acelerados de crianças. Nem brigadeiro ou copo de plástico com refrigerante. Não há a alegria dos papéis de
presentes brilhantes. Nada. Solidão no escuro.

Um ponto ainda de luz. Se é que existe. Existe. Basta uma respiração inicial para desafogar as veias. Para deixar que o sangue circule ainda e, que as células mantenham o exercício de contração e abertura. Preciso de sol nos poros. Fortalecer os ossos. Olhar bem para a claridade, deixar secar o sangue quente sobre a pele.

Ocorre uma seqüência de interrupções. Interrupção do desenvolvimento do outro e do meu. O estacionamento das relações. Um dominó de bloqueios. Quase sem possibilidade de fala. Como estar ao lado de alguém e este ser inalcancável. Um abismo entre dois corpos e duas consciências. Um precipício de julgamento e de condenação.
Depois tudo retorna a você. Só você sabe quando o calo dói. Tenho um calo no centro das costas. Abre e atravessa.


01/05/2007
A tortura

Noite com calor. Os dias apressados. Os horários certos do amor. As noites frias de um sexo quase obrigatório. A alma vai em sentido contrário aos atos. O desejo súbito de conseguir tudo completamente sozinha. A vontade de abandonar sem mais nem menos, aqueles que te acompanham. Espera por um pouco mais de amor. Espera sim porque todo mundo espera. Lixa as unhas num domingo chuvoso. Tenta lembrar aquele tefefone do homem exclusivo que começa com 5575 ou era 5572? Ela já não se lembra. Mas também nem era pra ligar. Apagou os telefones da agenda do telefone celular depois de ter sido contrariada. Sempre foi assim: “Qualquer coisa, manda embora”. Qualquer coisa que dá errado, a mulher deleta da vida.

Amanhã o trabalho. Depois uma busca pelo equilíbrio, depois o trânsito dos ônibus. Agora, domingo caloroso e chuvoso. Abafado como sexo. Sem muito desejo, ela está aí parada, à espera de algum telefonema. Por acaso ou por tédio, esperando o horário de dormir ou as próximas atrações da televisão. Agora, algum ano que começa que nem o outro que passou que nem o outro que ainda virá. Teme que o amor morra. Teme em ficar sozinha. Talvez tome comprimidos para dormir. Talvez se masturbe. Talvez ligue apenas para brigar e para dizer que não tem assunto. Existem casais que não têm assunto por anos. Pessoas exclusivas estão longe. A vida é aqui e sozinha. Parece que tudo deve ser duro. Ela ainda tenta se lembrar do número do telefone (5575 ou 5572) e depois se esquece do assunto. Era só para garantir ainda algum carinho sem pormenores, algum sexo bom e imediato. Faz tempo que diz não querer certos tipos de coisas. Dizem que faz bem ter algumas restrições na vida. Ela tenta construir. Entretanto, não gosta de restrições. Numa hora as restrições serão bem vindas. É possível que seja necessária alguma restrição agora.

Ana deve restringir tudo, mas não consegue. Muita vida dentro de si. Por fim, para quê tantas restrições? Por que procurar justificativas para salvar o caráter? Por que não ser a escória moral? Ana com resquícios de caráter. Então, quer ligar para o outro homem sim, quer estar com outro homem, não mais aquele a quem cumpriu ou prometeu alguma fidelidade. Por dentro, a vontade é toda contrária e ela sente tanta falta deste mesmo homem, que às vezes nem sabe se faz parte de sua vida ou não. Talvez Roberto já nem faça mais e ela alimente alguma fidelidade apenas para não se saber tão sozinha. Fato inevitável para o nosso jogo. Solidão e sexo desenfreado. Aquela antiga verdade que é, ainda, dos tempos de agora. Agora, ela já não sabe mais o que fazer. Vontade de ficar ali bem aberta para qualquer outro par de olhos que não sejam os mesmos, apenas para não se ver sempre da mesma forma, apenas para não cair de novo, num rabo de olho esguio e julgador.

Ana não leva nada desta vida. Não leva sequer, vozes muito atenciosas. Ela queixa-se de algumas coisas. Pensa em outras. A vida não anda fácil e ainda não é necessário se enforcar. A mulherzinha não consegue mais obedecer às regras. Não consegue ficar indo atrás. Segurar-se pelas bordas. Pedir e implorar por amor eterno e fiel. Ela não pode e nem deve se curvar a alguém que não faz o mesmo a ela. Mas a mulher se perde porque insistiram nalgum dia que se deve ter caráter e outros sentimentos morais. Não é o departamento preferido dela. Não é o departamento preferido dela também, ter que se privar de outros prazeres que ela não considera vis, por causa de uma segunda pessoa que insiste em lhe pedir um pouco mais de moral. Justamente, quem não precisava ter moral alguma. Pelo menos, em relação a ela. Entretanto, o mundo dá muitas voltas e toda e qualquer moral, um dia, cai por terra. É por isso que Ana, por vezes, prefere não representar. A representação é coisa de ator e a mulher não precisa ser atriz integral.

Tudo volta ao começo. A vida com laços frouxos esparramados pelo chão. É preciso refazer os nós das almas. É preciso amarrar as pessoas de novo. O gosto do cigarro desce pela garganta de Ana. Parece que regressou alguns anos. Agora os objetivos são outros com a mesma melodia. Ana quer ser outra porque ser a mesma por muito tempo não faz parte dela. Não é coerente se manter submissa, cega e desenvolta num caso de amor sem futuro. Agora, ela voltar a ser a mulher-sozinha-independente e envolvente para todos os outros. Ana precisa ser maior do que o conflito estabelecido. Precisa passar por cima do resto do mundo. Ela passará. Voltará a ser outra com outros olhos. Não é possível manter as coisas no mesmo patamar por meses, ainda mais quando elas te machucam. Ana quer mais futuro quer mais sonhos e mais belezas. Precisa determinar para si o que quer ou não. Precisa se desmantelar em outras coisas. Precisa arrumar outros amores. Ela não cabe em si mesma. Pinta as unhas, arruma o cabelo e colocará a melhor roupa para que o outro veja o que perdeu. Ana não é mulher de somente um amor. Sofrimento também tem limite. Precisa abandonar sem olhar para trás o que não lhe serve mais. As oportunidades são muitas, mas ela precisa crescer. Precisa de espaços múltiplos ou de uma jaula. Caso seja a jaula, ela precisa de um domador. Precisa de ordens. Precisa ser submissa na medida em que lhe é válido. Mas quando a jaula é somente um rótulo, Ana encontra todos os túneis de libertação. Ana só aceita a prisão quando lhe é positiva e voluntária. Ana não se prende em rótulos, não se prende pelo avesso, pelo o que lhe é estranho na maior parte dos dias.

Ana decide que deve trair. Não trai por algum tempo. Cozinha o ato pelos pensamentos antes de dormir. Poderia ligar para aquele, para o outro, para Ciclano ou Beltrano? Poderia se oferecer para qualquer um a qualquer hora. A mulher precisa de algum gás vital lhe enchendo os pulmões. Precisa de divertimentos. Depois, o tempo. A construção das coisas. É por fim necessária a traição? Será que o corpo não agüenta as algemas?

É uma mulher de 23 anos. Há pouco tempo atrás frequentava religiosamente a noite paulistana para se divertir e vadiar. Beber como lhe convinha, deitar com o homem que lhe apetecesse. Era assim, cada dia com um. Cada dia com uma exaltação quase mecânica do prazer. A libertinagem com alguma pulsão de morte disfarçada de pulsão de vida. Foi numa onda assim que Ana conheceu Roberto. Uma alegria feroz dentro do pequeno salão. Sorrisos, fumaça de cigarro, mais cerveja. Música nos ouvidos. Amigos ao redor que gritavam “beija logo vai”. Aí, o beijo. Depois uma alegria infinda que transbordava pelos olhos, pelos dentes brancos amarelados à meia luz. A mulher ria. Gargalhava. Estava plena às seis horas da manhã de um sábado. Saíram do local e sentaram na calçada. Mais beijos e afagos. Ana ainda está com este mesmo homem depois de oito meses. Pouco? Sim, pouco. Pouco para os casais que comemoram as bodas. Muito para quem transa com o outro por vinte minutos num banheiro qualquer.

Ana já não era mulher de quinze minutos, mas também não tinha completado bodas. Entretanto, é um tempo longo. Sobretudo, se pensarmos que ela se perde na realidade. Entretanto com o aparecimento de Roberto, lhe foi como o aparecimento da luz. Ficou perplexa e ainda fica de vez em quando o entusiasmo salta pelos olhos de Roberto. Caminham por ruas conhecidas e frágeis. Entram em lojas de móveis. Almejam o sonho de morarem juntos, de construírem a vida conjunta e criarem filhotes. Aparecem como o melhor casal dos últimos tempos. Mas Ana se masturba com freqüência pensando em outros homens. Porque Roberto não lhe satisfaz.
Poderia fazer como todos os outros e sair e vadiar, prometer fidelidade eterna no dia seguinte depois de uma noite com liberdade. Não consegue. Precisa conseguir alto grau de hipocrisia para chamar Roberto de “meu amor” depois de abrir as pernas a outro. Pensa então que não deve fazê-lo.

Não dever fazer não é uma promessa. É só uma obrigação que pode ser cumprida ou não. Ana acha que se deve cumprir a fidelidade, embora tudo o que é oposto lhe é melhor. Mantém, por fim, como uma atriz, dois lados de um mesmo jogo. Uma parte com todos os desejos contidos à espera da realização. Ou seja, desejos que serão realizados depois do término de seu relacionamento com Roberto. (Ela já pensa no fim). Uma segunda parte que promete a Roberto, os sonhos mais lindos e felizes. Alto grau de hipocrisia. Ana consegue ser a escória, quando quer. Além do sexo, havia outras coisas que incomodam Ana. Incomoda Ana ser mais forte e até mais masculina que Roberto. Não é uma questão de peso, é uma questão de objetividade. A mulher sempre foi muito direta, aberta. As coisas sempre tiverão uma lógica muito simples e nunca estivera preparada para as entrelinhas da relação amorosa. Vale dizer que ela não duvida do amor de Roberto e que goza com ele também. Mas agora deseja outra coisa. Outras experiências do pudor.

Entretanto, dizem por aí que, quando se quer muito uma coisa, o universo inteiro acaba por conspirar ao seu favor. Ela acredita nisso. Numa noite de liberdade, Ana traiu. Pelo menos, não foi com qualquer. Embora, tenha parecido que sim. Um amigo de muitos anos, por quem Ana fora apaixonada a maior parte de sua vida. Já tinham ficado no começo do ano passado e agora, novamente. Sempre fora uma relação um pouco problemática. Era com ele que Ana tinha algum exemplo das entrelinhas das relações amorosas. O fato não repercutiu na vida de Ana. Pensou nele por algumas vezes, mas nada além disso. Não queria enxergar aí mais entrelinhas desnecessárias.

No dia seguinte, a culpa. A vontade insensata de contar, de ser verdadeira até o ponto máximo. Vontade de esclarecer tudo para Roberto, porque ele era muito doce para merecer um par de chifres. Pensou em contar. Não contou. Ainda o chamou de “meu amor”. No fim das contas, a mulher queria aí um fio de moral. Queria agora, justificar o seu caráter. Não há justificativa. Ana não contou da traição e nem pretende contar. Já que, ela não interferiu em nenhum momento no amor que sente por Roberto. Esta é uma justificativa.

Desde então, Ana clama ainda mais pela liberdade. Quer Roberto, como um corpo que dorme atrás do seu, como um guardião. Quer o homem, porque é com ele que chora, é com ele que tem companheirismo e foi ele que atravessou sua vida para mostrar-lhe o desconhecido. Tem por ele uma admiração. Admiração deste caráter que, talvez ela almeja e não alcança. Pergunta-se então se deve abandonar os desejos contidos e, assim, uma parte de si, para se dedicar a um homem e tentar construir com ele alguma vida de aventura. Isto também lhe seria interessante.
Alguns dizem que Ana ainda está com Roberto por comodismo. De fato, é mais confortável recriminar os prazeres em prol de um amor minimamente agradável. Algo na mulher, entretanto diz, que o mínimo não lhe interessa, sempre deseja a amplidão. Mas não lhe ineteressa também o conflito.

Ana fica no meio da corda bamba. Não pende para nenhum dos lados. Segue os dias com doçura frente ao amado,m como quem vive num conto de fadas. Conto de fadas monstruosas. Mesmo assim, ainda mantém com Roberto uma relação agradável. Sente dúvidas em alguns de seus atos.
Neste exato momento, pensa em propor a Roberto algo mais leve como uma amizade colorida. Ótima saída para quem não quer ser violento. Então, mente para deixar tudo mais ameno. Como uma pessoa que queima a outra e depois para gelo para aliviar a dor. A mulher se tornou uma carrasca de Roberto e de si.
Ainda resta a decisão final. A verdade vem à tona e de qualquer forma, Ana é uma mulher tão nova que não cabe a ela ainda, falar de caráter e muito menos de moral. Existem questão que morrem conosco e as pessoas também morrem em vida ou em alma.
Ana não quer que Roberto morra e nem quer morrer. Assim talvez, crie uma peça teatral para si e se cobverta numa atriz integral de modo que consiga, mudart de máscaras com a mesma rapidez que a modelo troca de roupa numa passarela.
Segue como um caleidoscópio. Nunca é igual, nunca tem os mesmos desejos. A realidade como um jogo de teatro e a relação com Roberto, um poço que é depósito de imaginações. Múltiplas vidas em Ana.
(07/01/07 – 15/04/07)