domingo, 8 de julho de 2007

Sem vísceras


Sem nenhuma tentativa de sedução alheia. Um silêncio auto-instituído. Uma necessidade de se retirar da cidade. Embora, ela ainda me rodeie. Mesmo aqui entre quatro paredes, os vizinhos me anunciam a cidade societária. Não é necessário ir até o centro para saber da energia de lá. Dia de virada cultural. Sinto quase o cheiro. Os sorrisos e as latas de cerveja. Muitas pessoas. Muitos olhos. Uma infinidade de pequenos pares de pontos brilhantes. Antes aqui e quieta. “Antes aqui e agora”, Gilberto Gil. Lixos. Noite paulistana sempre sem estrelas. Mais cinza ainda por causa da falta de outdoors. Os prédios estão imundos. As propagandas escondiam a decadência das construções. Uma propaganda para falsear a carcaça. Um produto, uma mercadoria para colorir as carcaças, grandes, impetuosas, mas cinzas. Carcaça de edifício. Carcaça humana. Também descolorida num misto de preto e branco. Sombras. Uma cidade morta? Arquitetura aos pedaços.Uma janela quebrada. Um andar de edifício, às vezes, só a parede frontal. Inóspitos. Rugosidades desmoronadas. Uma construção em desconstrução. Alicerces apontam para o céu. Tijolos que se desfazem. Cor de terra. Madeiras podres. Madeiras em construções em outra parte da cidade. Favelas. Casas esquecidas. Edifícios multiplicados pelas esquinas. Quanto mais alto, melhor. Cidade em decomposição. Outros traços. Edifícios erguidos com rapidez. Largo 13 de maio sem camelôs. Há quanto tempo eu não passava por lá? Agora, tudo bonito. Com canteiros de jardim. Depois, serão destruídos. Uma sobreposição de tijolos. Sobreposição de corpos mortos jogados uns sobre os outros. Cidade escancarada.

Então, a minha carcaça e a sua? A dele e a dela também? Quantas cores você tem na carcaça? Quais mercadorias carrega? Como monta seus produtos no seu corpo-cabide? Calças novas, brincos, anéis, colares, esmaltes, presilhas de cabelo, batom, boné, chinelo, blusa verde ou amarela? E os celulares? Qual é o modelo que você tem?
Carcaça-personagem?
Nome. Idade. Profissão. Como assim não faz nada da vida? CPF e RG por favor. Atestado de óbito, por gentileza. Ok. Obrigado. A música pára. Crianças. Crianças-carcaças? A carcaça da mãe na filha?
Projeções de sombras?

Segundo o dicionário Houaiss, acepção de número dois: cadáver de animal de açougue, sem o couro, os pés, a cabeça e as vísceras. Carcaça. Mais ainda ocorre a virada cultural e os edifícios traçam a geografia do centro. As escadarias, os bêbados, as pessoas alegres. Muitas roupas. Muitas marcas de cerveja para você escolher. Tanta felicidade de carcaça. Deixei minha carcaça no guarda-roupa. Não quero a presença do mundo. O esqueleto sente necessidade de troca. Os esqueletos também se decompõem em vida. Difícil saber quando. O corpo perde o equilíbrio. A consciência desconfia dos gestos alheios. É a precaução. Algumas pessoas acreditam que o fato de você se precaver é sinal de glória. Uma forma de não expor a carcaça. É algo feio. Sem cor, gelado, enrugado. Desidratado. Entretanto, a carcaça vem de brinde quando você é tirado do ventre. É uma condição do mundo contemporâneo. Impossível viver sem uma carcaça. Sem um conjunto de regras da aparência-cabide. Sem um personagem pronto, que ri, empina o nariz ou rebola com desenvoltura.

Depois de doze horas. A mulher fala ao telefone. Vai para a bendita virada cultural. Metropolitanos, uni-vos às águas de esgoto. Aos xixis pelas esquinas. Uni-vos, sobretudo, aos tapas, aos gritos, aos vinhos baratos dos supermercados coloridos, às armas dos policiais, aos olhos dos policias. Fiquem todos reunidos para a aberração da cidade, para as contruções centrais em decadência, para o ritual anual do centro velho. Música, cerveja quente num boteco sujo, mulheres e velhos safados, gays e lésbicas, bêbados e cambaleantes. Bem vindo à tentativa de driblar os olhos do Estado para que você consiga usar a sua droga. Cocaína, ecstasy, maconha. Todas elas também à disposição para uma maior união dos metropolitanos. Eles se unem. Com fervor.

Dois shows e duas brigas. Não há cerveja quente? Que estranho. Pois é, a gente não tinha muita cerveja guardada. Tá gelando. Já chega aí. Não tem problema, depois a gente bebe nalgum boteco. Beleza. Telão. Mulher mexendo as pernas. Alguns poucos esqueletos. Maxilares desenvolvem sorrisos. Consciências tentam justificativas para uma briga. Um velho safado passa a mão no ventre de uma mulher. Ela bate no velho. Justifica. Outra mulher apóia. Devia ter chutado mais. Talvez. É possível saber parar uma raiva? Bloquear os gestos difusos que se multiplicam pelas extremidades? Difícil. Melhor espancar mesmo. O céu sem estrelas. Já era previsto. Muitas estruturas férreas, muitos bloqueios, ordem e segurança. Progresso também? Muitos lixos. Catadores de latas por toda a parte, basta virar os olhos para a lata sumir. Mas tem as garrafas que também rolam pelo chão, como os bêbados do dia seguinte. Alguma coisa válida nisto tudo? Sim. Uma dança ao longo do prédio da Light, em frente ao Mappin. Sim, ali na Carlos Gomes. Em diagonal ao Teatro Municipal. Luzes e cetins brilhantes. Vermelho e verde. Uma música ao fundo. Beatriz, de Chico Buarque e Edu Lobo. Que brilhante idéia usar o prédio como chão. Será tudo escombro. Fim dos tempos?

Ainda virada cultural. Mais um show. Ótimo para os ânimos. Muita gente animada demais. Dói nos ouvidos e faz arder os olhos. Retinas multiplicadas. Todas as portas das magazines abaixadas. Tudo num tempo sem fim. Sem hora. Sem ano. Sem estatística. Poderiam ficar, ali, permanentemente, todas estas carcaças unidas em momento de diversão. Na cidade, as coisas também terminam. A mulher termina no boteco do Anhangabaú. Outrora tivera sentado num dos bancos que avistava. Em outra época, que também poderia ter sido permanente. Muitas cervejas na mesa. Seis carcaças-mulheres. De 19 a 40 anos. Lésbicas e heterossexuais.
Conhecidas de lugares por aí. Te conheço de algum lugar. Eu também te conheço, mas não me lembro de onde. Tem fulano e ciclano. Beltrano também faz teatro. Eu passei por uma escola. Depois, dívidas e filosofias. A cerveja quente do boteco acabou.

Mulheres para suas casas. Mulher-carcaça- cambaleante perde o ponto de equilíbrio. Metrô. Ônibus. Dor de cabeça. Claro, cerveja quente. Muitos cigarros. Cheiro de esgoto, gosto de cerveja quente na boca, fumaça entrando de todos os jeitos pelos furos faciais. Sai correndo pela rua escura. Bêbada-ofegante chega em casa. Para o banheiro. Até que enfim, posso guardar a carcaça no guarda-roupa.

(Ainda em processo)

Um comentário:

Unknown disse...

Bom, não preciso dizer que me torno cada dia mais sua fã. Gosto muito.
To chegando para vestir a minha carcaça paulistana. Compreendo suas angústias da grande cidade, mas lhe confesso que sinto falta as vezes.
Aqui não é muito diferente, apenas as proporções são menores, o que as vezes torna tudo mais claustrofóbico e localizado.
De qualquer forma anseio pelo ar da cidade paulista, dos amigos paulistas e das conversas em brasileiro.
Dia 8 to aí. Quero te ver
Um beijo enorme