domingo, 8 de julho de 2007

A tortura

Noite com calor. Os dias apressados. Os horários certos do amor. As noites frias de um sexo quase obrigatório. A alma vai em sentido contrário aos atos. O desejo súbito de conseguir tudo completamente sozinha. A vontade de abandonar sem mais nem menos, aqueles que te acompanham. Espera por um pouco mais de amor. Espera sim porque todo mundo espera. Lixa as unhas num domingo chuvoso. Tenta lembrar aquele tefefone do homem exclusivo que começa com 5575 ou era 5572? Ela já não se lembra. Mas também nem era pra ligar. Apagou os telefones da agenda do telefone celular depois de ter sido contrariada. Sempre foi assim: “Qualquer coisa, manda embora”. Qualquer coisa que dá errado, a mulher deleta da vida.

Amanhã o trabalho. Depois uma busca pelo equilíbrio, depois o trânsito dos ônibus. Agora, domingo caloroso e chuvoso. Abafado como sexo. Sem muito desejo, ela está aí parada, à espera de algum telefonema. Por acaso ou por tédio, esperando o horário de dormir ou as próximas atrações da televisão. Agora, algum ano que começa que nem o outro que passou que nem o outro que ainda virá. Teme que o amor morra. Teme em ficar sozinha. Talvez tome comprimidos para dormir. Talvez se masturbe. Talvez ligue apenas para brigar e para dizer que não tem assunto. Existem casais que não têm assunto por anos. Pessoas exclusivas estão longe. A vida é aqui e sozinha. Parece que tudo deve ser duro. Ela ainda tenta se lembrar do número do telefone (5575 ou 5572) e depois se esquece do assunto. Era só para garantir ainda algum carinho sem pormenores, algum sexo bom e imediato. Faz tempo que diz não querer certos tipos de coisas. Dizem que faz bem ter algumas restrições na vida. Ela tenta construir. Entretanto, não gosta de restrições. Numa hora as restrições serão bem vindas. É possível que seja necessária alguma restrição agora.

Ana deve restringir tudo, mas não consegue. Muita vida dentro de si. Por fim, para quê tantas restrições? Por que procurar justificativas para salvar o caráter? Por que não ser a escória moral? Ana com resquícios de caráter. Então, quer ligar para o outro homem sim, quer estar com outro homem, não mais aquele a quem cumpriu ou prometeu alguma fidelidade. Por dentro, a vontade é toda contrária e ela sente tanta falta deste mesmo homem, que às vezes nem sabe se faz parte de sua vida ou não. Talvez Roberto já nem faça mais e ela alimente alguma fidelidade apenas para não se saber tão sozinha. Fato inevitável para o nosso jogo. Solidão e sexo desenfreado. Aquela antiga verdade que é, ainda, dos tempos de agora. Agora, ela já não sabe mais o que fazer. Vontade de ficar ali bem aberta para qualquer outro par de olhos que não sejam os mesmos, apenas para não se ver sempre da mesma forma, apenas para não cair de novo, num rabo de olho esguio e julgador.

Ana não leva nada desta vida. Não leva sequer, vozes muito atenciosas. Ela queixa-se de algumas coisas. Pensa em outras. A vida não anda fácil e ainda não é necessário se enforcar. A mulherzinha não consegue mais obedecer às regras. Não consegue ficar indo atrás. Segurar-se pelas bordas. Pedir e implorar por amor eterno e fiel. Ela não pode e nem deve se curvar a alguém que não faz o mesmo a ela. Mas a mulher se perde porque insistiram nalgum dia que se deve ter caráter e outros sentimentos morais. Não é o departamento preferido dela. Não é o departamento preferido dela também, ter que se privar de outros prazeres que ela não considera vis, por causa de uma segunda pessoa que insiste em lhe pedir um pouco mais de moral. Justamente, quem não precisava ter moral alguma. Pelo menos, em relação a ela. Entretanto, o mundo dá muitas voltas e toda e qualquer moral, um dia, cai por terra. É por isso que Ana, por vezes, prefere não representar. A representação é coisa de ator e a mulher não precisa ser atriz integral.

Tudo volta ao começo. A vida com laços frouxos esparramados pelo chão. É preciso refazer os nós das almas. É preciso amarrar as pessoas de novo. O gosto do cigarro desce pela garganta de Ana. Parece que regressou alguns anos. Agora os objetivos são outros com a mesma melodia. Ana quer ser outra porque ser a mesma por muito tempo não faz parte dela. Não é coerente se manter submissa, cega e desenvolta num caso de amor sem futuro. Agora, ela voltar a ser a mulher-sozinha-independente e envolvente para todos os outros. Ana precisa ser maior do que o conflito estabelecido. Precisa passar por cima do resto do mundo. Ela passará. Voltará a ser outra com outros olhos. Não é possível manter as coisas no mesmo patamar por meses, ainda mais quando elas te machucam. Ana quer mais futuro quer mais sonhos e mais belezas. Precisa determinar para si o que quer ou não. Precisa se desmantelar em outras coisas. Precisa arrumar outros amores. Ela não cabe em si mesma. Pinta as unhas, arruma o cabelo e colocará a melhor roupa para que o outro veja o que perdeu. Ana não é mulher de somente um amor. Sofrimento também tem limite. Precisa abandonar sem olhar para trás o que não lhe serve mais. As oportunidades são muitas, mas ela precisa crescer. Precisa de espaços múltiplos ou de uma jaula. Caso seja a jaula, ela precisa de um domador. Precisa de ordens. Precisa ser submissa na medida em que lhe é válido. Mas quando a jaula é somente um rótulo, Ana encontra todos os túneis de libertação. Ana só aceita a prisão quando lhe é positiva e voluntária. Ana não se prende em rótulos, não se prende pelo avesso, pelo o que lhe é estranho na maior parte dos dias.

Ana decide que deve trair. Não trai por algum tempo. Cozinha o ato pelos pensamentos antes de dormir. Poderia ligar para aquele, para o outro, para Ciclano ou Beltrano? Poderia se oferecer para qualquer um a qualquer hora. A mulher precisa de algum gás vital lhe enchendo os pulmões. Precisa de divertimentos. Depois, o tempo. A construção das coisas. É por fim necessária a traição? Será que o corpo não agüenta as algemas?

É uma mulher de 23 anos. Há pouco tempo atrás frequentava religiosamente a noite paulistana para se divertir e vadiar. Beber como lhe convinha, deitar com o homem que lhe apetecesse. Era assim, cada dia com um. Cada dia com uma exaltação quase mecânica do prazer. A libertinagem com alguma pulsão de morte disfarçada de pulsão de vida. Foi numa onda assim que Ana conheceu Roberto. Uma alegria feroz dentro do pequeno salão. Sorrisos, fumaça de cigarro, mais cerveja. Música nos ouvidos. Amigos ao redor que gritavam “beija logo vai”. Aí, o beijo. Depois uma alegria infinda que transbordava pelos olhos, pelos dentes brancos amarelados à meia luz. A mulher ria. Gargalhava. Estava plena às seis horas da manhã de um sábado. Saíram do local e sentaram na calçada. Mais beijos e afagos. Ana ainda está com este mesmo homem depois de oito meses. Pouco? Sim, pouco. Pouco para os casais que comemoram as bodas. Muito para quem transa com o outro por vinte minutos num banheiro qualquer.

Ana já não era mulher de quinze minutos, mas também não tinha completado bodas. Entretanto, é um tempo longo. Sobretudo, se pensarmos que ela se perde na realidade. Entretanto com o aparecimento de Roberto, lhe foi como o aparecimento da luz. Ficou perplexa e ainda fica de vez em quando o entusiasmo salta pelos olhos de Roberto. Caminham por ruas conhecidas e frágeis. Entram em lojas de móveis. Almejam o sonho de morarem juntos, de construírem a vida conjunta e criarem filhotes. Aparecem como o melhor casal dos últimos tempos. Mas Ana se masturba com freqüência pensando em outros homens. Porque Roberto não lhe satisfaz.
Poderia fazer como todos os outros e sair e vadiar, prometer fidelidade eterna no dia seguinte depois de uma noite com liberdade. Não consegue. Precisa conseguir alto grau de hipocrisia para chamar Roberto de “meu amor” depois de abrir as pernas a outro. Pensa então que não deve fazê-lo.

Não dever fazer não é uma promessa. É só uma obrigação que pode ser cumprida ou não. Ana acha que se deve cumprir a fidelidade, embora tudo o que é oposto lhe é melhor. Mantém, por fim, como uma atriz, dois lados de um mesmo jogo. Uma parte com todos os desejos contidos à espera da realização. Ou seja, desejos que serão realizados depois do término de seu relacionamento com Roberto. (Ela já pensa no fim). Uma segunda parte que promete a Roberto, os sonhos mais lindos e felizes. Alto grau de hipocrisia. Ana consegue ser a escória, quando quer. Além do sexo, havia outras coisas que incomodam Ana. Incomoda Ana ser mais forte e até mais masculina que Roberto. Não é uma questão de peso, é uma questão de objetividade. A mulher sempre foi muito direta, aberta. As coisas sempre tiverão uma lógica muito simples e nunca estivera preparada para as entrelinhas da relação amorosa. Vale dizer que ela não duvida do amor de Roberto e que goza com ele também. Mas agora deseja outra coisa. Outras experiências do pudor.

Entretanto, dizem por aí que, quando se quer muito uma coisa, o universo inteiro acaba por conspirar ao seu favor. Ela acredita nisso. Numa noite de liberdade, Ana traiu. Pelo menos, não foi com qualquer. Embora, tenha parecido que sim. Um amigo de muitos anos, por quem Ana fora apaixonada a maior parte de sua vida. Já tinham ficado no começo do ano passado e agora, novamente. Sempre fora uma relação um pouco problemática. Era com ele que Ana tinha algum exemplo das entrelinhas das relações amorosas. O fato não repercutiu na vida de Ana. Pensou nele por algumas vezes, mas nada além disso. Não queria enxergar aí mais entrelinhas desnecessárias.

No dia seguinte, a culpa. A vontade insensata de contar, de ser verdadeira até o ponto máximo. Vontade de esclarecer tudo para Roberto, porque ele era muito doce para merecer um par de chifres. Pensou em contar. Não contou. Ainda o chamou de “meu amor”. No fim das contas, a mulher queria aí um fio de moral. Queria agora, justificar o seu caráter. Não há justificativa. Ana não contou da traição e nem pretende contar. Já que, ela não interferiu em nenhum momento no amor que sente por Roberto. Esta é uma justificativa.

Desde então, Ana clama ainda mais pela liberdade. Quer Roberto, como um corpo que dorme atrás do seu, como um guardião. Quer o homem, porque é com ele que chora, é com ele que tem companheirismo e foi ele que atravessou sua vida para mostrar-lhe o desconhecido. Tem por ele uma admiração. Admiração deste caráter que, talvez ela almeja e não alcança. Pergunta-se então se deve abandonar os desejos contidos e, assim, uma parte de si, para se dedicar a um homem e tentar construir com ele alguma vida de aventura. Isto também lhe seria interessante.
Alguns dizem que Ana ainda está com Roberto por comodismo. De fato, é mais confortável recriminar os prazeres em prol de um amor minimamente agradável. Algo na mulher, entretanto diz, que o mínimo não lhe interessa, sempre deseja a amplidão. Mas não lhe ineteressa também o conflito.

Ana fica no meio da corda bamba. Não pende para nenhum dos lados. Segue os dias com doçura frente ao amado,m como quem vive num conto de fadas. Conto de fadas monstruosas. Mesmo assim, ainda mantém com Roberto uma relação agradável. Sente dúvidas em alguns de seus atos.
Neste exato momento, pensa em propor a Roberto algo mais leve como uma amizade colorida. Ótima saída para quem não quer ser violento. Então, mente para deixar tudo mais ameno. Como uma pessoa que queima a outra e depois para gelo para aliviar a dor. A mulher se tornou uma carrasca de Roberto e de si.
Ainda resta a decisão final. A verdade vem à tona e de qualquer forma, Ana é uma mulher tão nova que não cabe a ela ainda, falar de caráter e muito menos de moral. Existem questão que morrem conosco e as pessoas também morrem em vida ou em alma.
Ana não quer que Roberto morra e nem quer morrer. Assim talvez, crie uma peça teatral para si e se cobverta numa atriz integral de modo que consiga, mudart de máscaras com a mesma rapidez que a modelo troca de roupa numa passarela.
Segue como um caleidoscópio. Nunca é igual, nunca tem os mesmos desejos. A realidade como um jogo de teatro e a relação com Roberto, um poço que é depósito de imaginações. Múltiplas vidas em Ana.
(07/01/07 – 15/04/07)

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